Achei a frase “não é mãe, é mar” num dos muitos cadernos inacabados que coleciono. A frase estava numa página denominada “sábias correções” ou “sabedorias de um corretor”, onde eu anotava algumas correções automáticas que o corretor ortográfico fazia nas mensagens que eu escrevia. Eu via certa poesia nelas, especialmente na escolhida para o título desse texto.
Tive contato com o mar desde muito cedo, e não importa onde eu esteja no mapa mundi, sei que posso contar com o sentimento de acolhimento ao colocar os pés na água salgada — seja no mar chocolatão do sul do Brasil ou no cristalino das praias caribenhas.
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Minha mãe adorava a praia, mas nunca foi muito fã do mar. Ela preferia ficar na areia relaxando e se bronzeando.
Quando fui para Garopaba, em Santa Catarina, com um grupo de amigos, pedi indicações de praias para visitar e minha mãe indicou a Praia do Silveira.
Lembro de olharmos a praia no Google Maps e achar que era pertinho de onde estávamos, então decidimos ir a pé. Não demorou muito para nos arrependermos, pois logo percebemos que a maior parte do caminho era íngreme, subindo morros por caminhos de terra batida.
Acabamos pegando carona no meio do caminho. Tivemos que sentar uns em cima dos outros para caber no carro. Parecia um carro de palhaço, de tanta gente que coube lá dentro.
Quando falamos para o motorista o nosso destino, ele disse para tomarmos cuidado, disse que lá não tinha mar para principiantes. Ao chegar, entendemos o que ele quis dizer.
O mar na Praia do Silveira tava longe de ser calmo. Havia ondas fortes já na beira do mar, onde tinha uma profundidade significativa também. Acabou que ninguém teve coragem de entrar, nem os mais experientes. Além das ondas agressivas, parecia haver um forte repuxo também.
Fiquei sem entender o porquê minha mãe indicou aquela praia para nós, mas daí me caiu a ficha: ela não gostava de mar, e sim de areia e sol. E era impossível negar a beleza daquele lugar que, por não ter um dos mares mais amigáveis, era um tanto deserto.
Sem falar que, depois, descobrimos que aquela era uma praia muito frequentada por surfistas, ou seja, minha mãe gostava de pegar um solzinho enquanto observava uns guris bronzeados fazendo umas manobras radicais na água. Eu já devia ter imaginado.
No fim, não teve carona na volta. Tivemos que voltar a pé mesmo.
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Já meu pai ama o mar. Uma das melhores (e únicas) lições que ele me ensinou foi a de como lidar com a água salgada.
Desde pequena, ele me levava no colo até o “fundão”, que é como chamamos a área além da zona de rebentação das ondas. Às vezes, ele me tirava do colo pra eu aprender a nadar, ou melhor, a me virar sozinha, porque aquilo era no máximo um “nado cachorrinho” que, de acordo com o Google, também é conhecido como “nado de sobrevivência”. Não recomendo, mas admito que funcionou.
Mas descobri na marra que essa “tática” funciona apenas no mar, porque no dia que nadei num lago, num cenote no México, senti um não tão leve desespero. O lago me puxava pra baixo sem misericórdia, eu tinha que fazer um esforço absurdo pra permanecer na superfície.
Foi aí que percebi que não sou necessariamente uma boa nadadora, mas sim uma ótima boia. O sal do mar me mantém na superfície com facilidade, como se não me quisesse no fundo, purificando, assim, o seu bioma.
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Não sou conhecida por ter uma ótima memória, mas entre as poucas que tenho da minha infância, essa é uma das mais vívidas:
Estávamos eu, minha mãe e meu pai entrando no mar. Eu estava no colo do meu pai e minha mãe vinha logo atrás. Ele estava me ensinando a como mergulhar quando uma onda chegasse perto de nós. Vieram três ondas, uma atrás da outra, e mergulhamos juntos, as “furando”.
Ao final da terceira onda, olhamos pra trás e vimos minha mãe levando um caldo da última onda. Aparentemente ela mergulhou só na primeira e foi surpreendida pela segunda e pela terceira, levando assim não só um, mas dois caldos. Ela se recompôs com raiva, virou as costas e saiu do mar — xingando, é claro, pois minha mãe consegue ter a boca mais suja que a minha (até porque eu aprendi com ela).
A minha mãe até tentou fazer as pazes com o mar, mas parecia que ele não tinha as mesmas intenções.
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Meu pai amava tanto o mar que dizia que, quando morresse, queria que suas cinzas fossem jogadas no mar de Garopaba — metade delas, pelo menos, pois a outra metade era para ser jogada no Estádio Beira-Rio.
Infelizmente, meu dindo, e irmão mais novo do meu pai, morreu aos 29 anos de câncer, e antes de morrer ele pediu para que o último desejo de meu pai fosse o dele também.
Hoje, metade do meu dindo nada pelos mares de Garopaba e a outra metade torce no estádio do Inter — assim como ele fazia quando ainda estava vivo.
Na primeira partida que o time jogou em casa, após as cinzas do meu dindo serem espalhadas pelo estádio, o Inter venceu de um a zero. Minha família gosta de acreditar que foi meu dindo quem fez aquele gol.
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Na adolescência acabei me afastando um pouco da minha família e, consequentemente, do mar. Infelizmente, esse afastamento se estendeu até a fase adulta.
Lá pelos meus vinte e poucos anos, quando eu já morava sozinha fora do Brasil, e estava prestes a estudar numa das maiores faculdades da China, encontrei algo que acreditei ser o meu chamado: o mergulho (também conhecido como scuba diving).
Eu não fazia ideia de que existiam mergulhos recreativos. Me empolguei, larguei a faculdade antes mesmo das aulas começarem e me dediquei totalmente ao mergulho. Nem tentei um test drive, meu primeiro mergulho já fazia parte do curso introdutório Open Water da SSI. E a partir daí, todos os meus mergulhos seguintes faziam parte do treinamento, do aprendizado, que ia do básico — como controlar o meu equilíbrio em baixo d’água para não esbarrar na vida marinha — ao avançado — onde aprendi a resgatar pessoas debaixo d’água, levá-las até a superfície e ao barco em segurança, e, se necessário, realizar RCP.

Me dediquei ao mergulho por anos. Trabalhei muito para conseguir comprar os equipamentos necessários e pagar os cursos que me tornariam uma divemaster (“mestre/líder de mergulho”) e, em seguida, uma instrutora de mergulho.
Porém, quando eu estava prestes a me tornar uma divemaster, eu desisti.
Eu nunca havia desistido de algo dessa magnitude, que afetasse tanto os meus planos pro futuro. Me senti um fracasso, mas percebi que eu estava, mais uma vez, tentando tornar algo que amo em lucro, em trabalho. O famoso “trabalhe com o que ama e nunca precisará trabalhar na vida”. Balela!
Eu amo mergulhar, e amava estar em constante contato com a água, mas foi quando mergulhei por simples prazer, sem a pressão profissional, que vi que era aquilo que eu queria, que eu realmente amava. Então desisti da carreira profissional de mergulhadora.

Enquanto eu ainda estudava scuba diving, passei pelo término mais difícil que vivenciei até hoje — tanto pela intensidade do relacionamento quanto pela brutalidade do término. Fiquei destruída. O poço não era fundo o suficiente, eu me sentia no fundo do oceano. E o mesmo que me recebeu como ambiente do meu sofrimento também foi responsável pela minha recuperação.
Nos primeiros dias pós término, descobri o álbum Atlas: Oceans da banda Sleeping At Last e comecei a escutá-lo todas as noites para dormir, pois eu só conseguia dormir assim. Ele acalmava o meu anseio, desacelerava a minha respiração e o meu coração.
Mais tarde, quando eu já estava melhor, tentei ouvir o álbum e senti toda aquela ansiedade me dominar novamente. Parecia que as músicas haviam sugado a minha dor, a guardado dentro de suas melodias, e quando as escutei de novo senti aquela mesma dor respingar de volta pra mim. Por causa disso, fiquei anos sem conseguir ouvir essas cinco músicas que tanto amo.
Hoje consigo ouvir o álbum sem sentir aquele aperto no peito. Fico triste que o mesmo tenha representado uma parte tão triste da minha vida por tanto tempo, mas hoje, felizmente, é só mais uma memória, e não um trauma.
Ainda com o coração partido, tive a oportunidade de visitar o mar por uns dias. Não lembro se era de manhã ou no início da tarde, mas não havia ninguém naquela praia, então aproveitei a solidão e boiei. Eu amo boiar.
O mar estava extremamente calmo, mal havia ondas, então escutei os sons do oceano e senti o sol quente no meu rosto. Respirei fundo e pensei nela. Ou melhor, tentei pensar nela, mas não consegui. Toda vez que o nome ou o rosto dela apareciam na minha mente, eles eram instantaneamente jogados pra fora. Parecia que uma força externa, além do meu controle, não quisesse que eu pensasse nela. Parecia que o mar tava me guiando, me ajudando a focar no que realmente importava. Eu.
Eu não sou uma pessoa de muita fé, na verdade, sou bastante cética, mas foi naquele momento que comecei a me curar, porque foi ali que consegui pensar em mim e somente em mim. Sem ela.
Esse momento me marcou muito, ainda mais por causa das queimaduras de sol que tive pelo corpo todo, pois fiquei boiando por mais de uma hora sem ter passado um protetor solar sequer. Foi feia a queimadura. Talvez o que pensei sentir, a tal da força externa, eram apenas delírios causados pela exposição ao sol. Quem sabe?
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Pode ser clichê (e que seja se assim o for), mas o mar esteve lá pra mim em momentos bons e ruins, até péssimos, assim como uma mãe está lá para suas crias. Ele me acolheu, me ninou e até me repreendeu. E quando o corretor ortográfico corrigia a palavra mãe para mar, me lembrava de quem, ou do quê, sempre esteve lá, ali e aqui pra mim. Em mim.
Ah, e para os que chegaram até aqui: sou filha de Oxum.
A imagem usada para a capa desse post é a foto de uma baleia-franca-austral tirada pelo fotógrafo Sebastião Salgado que, infelizmente, nos deixou no mês passado. Essa foto foi tirada em 2004, na Argentina, e faz parte da exposição Gênesis, que é fruto de um projeto que levou 8 anos para ser concluído e mais de 30 viagens pelo mundo. O legado de Sebastião Salgado será eterno!
Quase um mês antes de perdermos o fotógrafo Sebastião Salgado, o mundo sofreu outra grande perda — não tão mundial quanto a anterior, mas igualmente importante. Enquanto eu escrevia esse texto descobri que o capitão do barco que usávamos (durante o meu curso de divermaster) faleceu em abril. Ele era um homem incrível, simples e doce. Me ensinou a receita da sua deliciosa guacamole, me fez gostar de comer peixe cru com o seu delicioso ceviche e cozinhou pra mim a primeira, e melhor, lagosta que já comi — que ele havia pescado na manhã daquele mesmo dia, assim como os peixes usados no seu ceviche. Descanse em paz, Noé. Obrigada pelos seus ensinamentos e cuidados. Tocastes muitas vidas e serás lembrado com muito carinho.
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